segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

A gente não quer só comida

Caros amigos,

E chegamos a mais um fim de ano. Época dos nossos tradicionais “posts”. E que ano...Ou melhor, e que semestre! Até a Copa América as coisas iam razoavelmente bem...Mas, um tsunami varreu o futebol brasileiro em julho. Sim, um tsunami dado sua força e “imprevisibilidade” (espero conseguir explicar as aspas no texto).

Difícil precisar exatamente quando, mas, lá pelos meados da década passada, nosso futebol foi sequestrado por um modelo de jogo primitivo. O principal símbolo foi Muricy Ramalho e seu tri pelo São Paulo. Resumidamente, defesa superprotegida, ligação direta e confiança nos cruzamentos e/ou “casquinhas” de centroavantes, buscando o gol redentor, o gol que garantia os 3 pontos. A enorme maioria dos jogos se traduzia em sofrimento, não importava se contra o Mirassol ou contra o Barcelona. O “único” enorme prazer era a vitória. E ela bastava. Na sequência, nesse ciclo vicioso, as vitórias favoreciam os técnicos e seus discípulos e vieram Mano, Tite, Marcelo Oliveira, Carille e que tais. As vitórias entorpeciam o torcedor e interditavam o debate. Como questionar “inquestionáveis” campeões.

Vindo de uma seca de títulos, era bastante desafiador para nosso amado time “inovar”. Era mais confortável, nadar na mesma raia dos adversários. Escrevendo em outras palavras, tentar jogar o melhor futebol medíocre do país. Além disso, nossa Libertadores foi jogada de forma, diríamos, menos arejada, apenas 3 anos depois da formação de um dos maiores esquadrões de nossa centenária história. Era a fome com a vontade de comer. Com Marcelo Oliveira, Cuca e Felipão, conquistamos 3 importantíssimos títulos nacionais.

Na prática, como ousar dizer que não bastava. Raras, raríssimas vozes abordavam a necessidade de fazer algo além, ainda mais com a vantagem financeira e a calma que a “barriga cheia de títulos” gera ou deveria gerar. Permitam-me, perdão, uma autocitação já que a questão de modelo de jogo foi abordada diversas vezes em “posts” que podem ser lidos neste “blog” e que foram publicados horas após as conquistas. De qualquer forma, esse pensamento de resgate do nosso DNA, de jogo propositivo, impositivo que nos permite com orgulho ostentar a alcunha de “A Academia” não ecoava nos corações e mentes da coletividade. Nem na fila tivemos times que trocavam menos de 100 passes por jogo. Toleramos isso. O carrinho na lateral que era símbolo do rival da Zona Leste, virou orgulho na Zona Oeste também.

As diretorias, em sua maioria, têm enorme receio em confrontar os torcedores. Como havia um apoio tácito da coletividade, a estratégia do Palmeiras em 2019 foi reforçar a aposta feita nos anos anteriores. Manutenção do modelo de jogo, renovação de contrato de todos os jogadores de 2018, aumento robusto para os 2 melhores jogadores do ano passado e contratações (falaremos disso em outro “post”) que se enquadravam nessa engrenagem. Como dar errado?

E não é que quase deu certo, novamente? Até a interrupção para a Copa América, o Flamengo de Abel Braga estava a impressionantes 8 pontos de diferença em apenas 9 rodadas. Éramos líderes incontestáveis, enfileirando uma série de vitórias magras, intercaladas com alguns espasmos de futebol (como contra o Fortaleza e Santos). Sim, continuávamos jogando o melhor futebol medíocre do Brasil.

Porém, e infortunadamente para nós, alguém no Flamengo percebeu que se não mudasse de raia, perderiam novamente. Fizeram uma aposta alta, dessas que só são permitidas quando a certeza de fracasso é certa, não por convicção. Trouxeram um técnico com o objetivo de propor algo parecido com o que só podíamos apreciar pela TV. Aquele famoso “é outro esporte” que dizíamos após sermos brindados por um bom espetáculo de futebol no Novo Mundo. Nada tão especial. “Apenas” repensaram a ojeriza pela bola. Intensidade na marcação em todos os espaços do campo e deslocamentos para facilitar passes. O ótimo time começou a vencer, vencer e vencer. Com isso, a tão importante confiança fez o restante. Como naqueles “alinhamentos de planetas” a coisa entre em círculo virtuoso. Foi um massacre. Em apenas alguns meses, título brasileiro com inéditos 90 pontos, incontáveis goleadas sobre os rivais e o título continental. Nada mal. Além dos aspectos objetivos (títulos), a forma alegre de jogar, sem dúvida, colabora demais para a conquista de mais torcedores mirins, pedra fundamental da grandeza de qualquer time.

Enfim, foi um tsunami. As ondas cariocas dizimaram 2 técnicos, um diretor de futebol, diversos jogadores e, talvez, tenha sido o começo da desintoxicação da coletividade em relação ao futebol primitivo. Pela primeira vez, li nas redes “antissociais” sobre a necessidade de jogar um bom futebol. Não necessariamente bonito, algo subjetivo, mas um bom futebol.

Como o Palmeiras responderá ao novo momento?

Infelizmente, não sei ao certo. Penso que as condições nunca estiveram tão favoráveis ao resgate da nossa história, da nossa identidade. Penso também que, se escolhermos mudar, como todo processo de desintoxicação, esse terá hesitação, tentação, recaídas, etc. Convicção, se houver, será posta à prova quase que diariamente.

Não é impossível que esse Flamengo reduza de ímpeto (dentro de campo), que seu técnico saia, que uma derrota no mata-mata para um técnico “reativo” mude o ambiente novamente. Penso que isso não deveria interessar.

Quem comanda um clube deveria sempre se inspirar no que nos trouxe até aqui. Nossa história de 105 anos teve dores, quedas, derrotas, mas, nunca falta de altivez. Nunca covardia. Não foi “jogando por uma bola” que seguramos no braço os canalhas que queriam tomar nosso estádio em 1942. Não foi com “bola parada” que os italianos que sofriam todo o tipo de preconceito fundaram a Società Sportiva Palestra Italia. Não foi com “casquinha” para centroavante que conquistamos o Mundo em 1951. Não foi com “chutão” que a Academia representou o Brasil em 1965.

A gente não quer só comida!

Marcelo, o Racional

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